Na tentativa de combater a “pirataria” de fantasias, a emenda saiu pior que o soneto: o bloco resolveu “inovar” numerando as fantasias. Cada fantasia teria impresso o numero de série do carnê de cada associado. Não deu certo: os primeiros lotes de fantasias foram entregues sem problemas, mas alguns lotes “sumiram”, o que atrasou a entrega das fantasias restantes. Como resultado, tumulto e “mediação” da polícia militar que foi chamada ao local (antigo Estádio da Fonte Nova) para acalmar os ânimos. No final, o bloco teve que ceder e distribuiu as fantasias sem considerar a numeração.
O desfile desse ano (2000) foi muito mais tranqüilo e aqueles que estavam acostumados com os tradicionais atrasos, foram pegos de surpresa. Muitos associados ainda nem haviam chegado ao Pelourinho quando o Afoxé já ganhava a Rua Carlos Gomes. O bloco iniciou o desfile religiosamente às 15 horas - antes das 19 horas, o bloco já desfilava na passarela principal do Campo Grande.
Nos anos seguintes, o bloco se modifica em relação a composição dos seus associados. O espaço na mídia conquistado desde o cinqüentenário fez aumentar a procura por parte de turistas brasileiros, estrangeiros e baianos acostumados a sair em blocos de trio. Como o preço do carnê era acessível, se comparado com os “abadás”, era possível sair em um bloco de trio e desfilar no Gandhy.
O trauma de 1999 afastou muitos associados antigos do bloco. Integrantes com mais de uma década de desfiles pelo Gandhy simplesmente abandonaram aos poucos o carnaval. Rostos conhecidos que no ano seguinte não apareciam. Nem todos se adaptaram ao que a nova diretoria chamava de “novos tempos”. Um número cada vez maior de jovens, em sua maioria branca, de classe média passou a freqüentar o bloco, com o objetivo de utilizar a “mística” do Gandhy para “conquistar” as meninas no carnaval.
Um colega que acompanhava o desfile, comentou que a cada ano que passava o “tapete branco da paz ficava cada vez mais branco”. Surgiam piadas de que a diretoria com o novo patrocinador (uma marca de sabão em pó) pretendia deixar o bloco “mais branco”. Ou de que o novo slogan do Gandhy seria “O tapete ariano da paz”. Apesar de serem brincadeiras, ficava claro que em um espaço muito curto de tempo, o bloco perdia a sua identidade. E o público que acompanha o carnaval percebia isso.
É certo (ou não) que entre esses novos associados, alguns se identificavam genuinamente com a filosofia e as tradições do bloco e tambem tínhamos por outro lado, os que se comportam como se estivessem nas “Muquiranas”. Ao contrário do que acontecia com o Ilê Aye, nunca houve no Gandhy uma restrição formal, pela saída de não-negros. Mas estes só tomaram o bloco “de assalto”, ou melhor, só passaram a freqüentar o bloco em massa, depois transformação dos Filhos de Gandhy em produto de fácil consumo Hoje, quando se fala em "sair no Gandhy" associa-se imediatamente à idéia de "pegar mulher" ou trocar colares por beijos Os ideais sobre os quais se fundamentou o sugimento do bloco, não fazem parte da "agenda".
No ano de 2006, um novo golpe nos associados da “velha guarda” do Gandhy: na tentativa de estancar o “derrame” de fantasias falsas, a diretoria do bloco resolve mexer um com dos maiores símbolos do bloco. No carnaval de 2006 os Filhos de Gandhy desfilaram com um turbante azul marinho.
Foi demais para os velhos associados. Muitos que já haviam pagado pela fantasia, se recusaram a desfilar. Alguns vestiram a fantasia, mas preferiram acompanhar o bloco fora das cordas, sem o turbante na cabeça. Até mesmo Gilberto Gil, ligado à diretoria criticou a descaracterização do bloco A revolta foi geral, mas ficava claro o posicionamento da diretoria em relação às antigas tradições. O ponto alto do desfile desse ano foi o “encontro” do bloco com o Camaleão, mas essa estória, conto em outro momento.
Admito que para os associados mais ligados à tradição dos Filhos do Gandhy, é difícil conviver com o clima de “descompromisso” que tomou conta do bloco. Boa parte dos novos foliões desconhece a história do bloco. Não conseguem entender a importância do bloco e nem percebem que por trás daquela indumentária existem 60 anos de história.
Vejo com tristeza os “playboyzinhos” malhados que rasgam a fantasia para deixar o peito e os braços expostos, imitando o He-Man. Ou os que inventam combinação de cores esdrúxulas para os colares só para agradar as meninas. Tem ainda os que vestem abadás de outros blocos por cima da fantasia para poder transitar entre um bloco e outro.
Tenho uma lembrança de minha adolescência pulando carnaval na Avenida Sete e presenciei uma mulher muito bonita implorar por um colar de um Filho de Gandhy. O cara nem se dignou a olhar pra cara dela. Eu fiquei impressionado com a “onda” que ele tirou. Hoje vejo os caras tentando agarrar as meninas à força ou sendo desrespeitosos quando são “descartados”.
Às vezes passo com meus amigos pela rua e percebo que muitas pessoas se afastam porque acham que todo Gandhy é um arruaceiro em potencial. É chato, mas compreendo ser reação ao comportamento de um grupo que já foi minoria no bloco, mas que hoje é cada vez mais numeroso.
Parece paradoxal, mas mesmo com todos esses problemas, ainda é muito bom sair no Gandhy. É uma oportunidade de estar com irmãos e amigos que só se encontram naquele momento. É escutar o ijexá no lugar de “chore na minha”, “foge, foge superman” ou “gú-gú dá-dá”. É a chance de curtir um momento de paz em um mundo onde a violência virou prato principal. É a possibilidade de brincar um outro carnaval.
(Nos próximos posts, tudo sobre a fantasia, as músicas, o desfile e outras curiosidades que envolvem o unverso dos Filhos de Gandhy)
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